Bobo Ashanti é uma congregação rastafari que surgiu nos anos de 1950. Seu fundador, "Príncipe" Edward Charles Emmanuel, principal figura na história desta comunidade, é um exemplo bastante extremado da liderança carismática dos Elders dentro do sistema hierárquico das relações entre os rastas. "Elder", palavra do dialeto jamaicano Patois, certamente é uma corruptela fonético-ortográfica do inglês OLD e OLDEN, significando velho, antigo e ainda, familiar, conhecido.
A designação destes líderes rastafaris, portanto, está ligada aos atributos específicos que a comunidade espera de um líder cujo "cargo" é vitalício. Maturidade como signo de saber, experiência acumulada e amplo conhecimento do perfil psicológico, consciente ou não, das pessoas a quem deverá orientar. Edward Emamanuel, chamado "Príncipe" por seus seguidores, em determinado momento de sualiderança religiosa, aderiu à idéia mística deseus seguidores de ele, Emmanuel, era, de fato, manifestação terrena e humana de uma das Pessoas da Santíssima Trindade, o próprio Jesus que havia retornado para guiar o povo no caminho da Salvação.
No Ocidente do século XX, o movimento Rastafari, ainda que por vezes apoiado em uma teologia questionável, representou e ainda representa um poderoso instrumento de resgate da identidade cultural dos povos negros em todo o mundo. Em sociedades culturalmente globalizadas, entre blasers, jeans e T-shirts, o apelo dos trajes afro-árabes do Elder é uma ousada manifestação de auto-estima étnica e orgulho da própria história.
O mito em torno de Emmanuel começou a se formar em um evento que reuniu várias congregações rastafari a fim de discutir as diretrizes do movimento. O assunto que mais interessava aos participantes era a proposta de Repatriação, um anseio que há muito vinha crescendo entre os jamaicanos: o retorno à África como resgate de um destino natural que a atividade escravista havia distorcido de forma cruel. O Retorno era encarado como um direito dos descententes de escravos, uma dívida dos brancos para os negros, era um ato corretivo lógico para o grande erro europeu do passado, era um sonho na consciência negra. Durante a Convenção, Emmanuel liderou uma caminhada simbólica que decretava o fim do degredo forçado e início do esperado Retorno.
Sua atuação no episídio impressionou de tal maneira que boa parte da audiência foi tomada de grande respeito pelo Elder a que passaram a ver como dotado de uma aura divina em torno da qual foi elaborada toda uma tese teológica de reencarnação da Santíssima Trindade em pessoas terrenas que representavam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, anunciando assim um tipo de manifestação material inédita da Unidade Incognóscível (Deus) que, no século XX, teria assumido condições de existência humana, como o próprio Cristo Jesus fizera. Desta vez, a Trindade estava corpofiricada em três indivíduos: além do Jesus-Emanuel Edward, o Filho, o Pai foi identificado em Haile Sellasie, o Imperador da Etiópia, voz africana de destaque internacional; quanto ao Espírito Santo, foi reconhecido no líder político Marcus Garvey, duas vezes personagem bíblico porque além de representar o Espírito Santo era visto como reencarnação de João Baptista, ou aquele que precedeu e previu a vinda do Cristo.
Evidentemente, a teologia dos Bobo-Ashanti é um alvo fácil para as críticas dos estudiosos. Haile Selassie que era bastante versado nos temas do cristianismo, que conhecia numerosos textos sagrados além da Bíblia canônica além de ser profundamente religioso, rejeitou inteiramente qualquer associação de sua pessoa com Jesus, o Cristo. Recusava adorações; lembrando que era apenas um homem afirmou: "não deve o homem adorar o homem", e colocava-se como humilde servo de Deus. Marcus Garvey também se negava a aceitar a exótica doutrina do Príncipe Emmanuel e mesmo de outros rastas, como o Elder Mr. Gad, das Doze Tribos, que também via Garvey como profeta e traçava analogias entre Garvey e João Batista, Selassie e Jesus, visão diferente portanto da de Emmanuel. Porém, Gad foi cauteloso, sempre usando metáforas e meias palavras. Há relatos de que Garvey chegou a considerar os rastafaris como fanáticos loucos por conta de tais idéias.
Não obstante, o povo aceitou facilmente a esperança que vinha desta "Trindade" teologicamente duvidosa e Emmanuel assumiu plenamente seu papel de Messias Negro organizando sua Igreja com severas regras morais, adotando fortes signos de identidade e fundamentando seu discurso com passagens da Bíblia com ênfase especial para a regulação do comportamento contidas nos livros do Antigo Testamento. Quando fala de Repatriação, recorre com frequência aos episódios de cativeiro dos judeus: na Babilônia e no Egito. Além do judaismo cristão, também o islamismo parece exercer considerável influência no sistema de Emmanuel e nisto não há conflito pois que a doutrina muçulmana também foi construída com elementos retirados do judaísmo e do cristianismo.
Na página oficial dos Bobo-Ashanti-Brasil, a Congregação se declara como Estado Parlamentar do qual "Prince Emmanuel" é "líder, presidente, Deus e Rei". Os principais objetivos deste Estado sem território estão assim relacionados: "Liberdade, redenção e repatriação" (retorno à África) ou ainda "África para os africanos, China para os chineses, Índia para os indianos, América para os Aruaques e Caraíbas e Europa para os Europeus". A denominação Bobo-Ashanti, que passou a ser usada a partir dos anos de 1970, é mais uma afirmação da identidade negra, referência ao passado glorioso das nações africanas. Bobo significa gente ou povo negro e shanti ou ashanti era a designação para os guerreiros entre os Kumasi, da atual República de Gana, antiga Costa do Ouro, norte-ocidental do continente.
O resgate cultural parece ser uma das preocupações centrais da ideologia da Congregação. Curiosamente, a originalidade dessa cultura há muito se perdeu entre entre os afro-descendentes que, nas Américas, assimilaram elementos das tradições de outros povos gerando uma expressão variada do modo ser Bobo-Ashanti. Os Bobo da Jamaica não são absolutamente iguais aos Bobo de Trinidad-Tobago, por exemplo, assim como não iguais aos seus ancestrais Kumasi. Mesmo na África, o contato com os europeus, árabes e judeus, há muito introduziram todo um corpo de idéias importadas e devidamente assimiladas que aparecem no modo de viver, nos padrões de consumo, na ordem social e, especialmente, no âmbito religioso.
Atualmente, as religiões primitivas da África não pereceram, porém ocupam um lugar periférico em relação às "grandes" religiões: cristianismo Católico Romano, Protestante e Ortodoxo, judaísmo e islamismo (ao norte do continente) e hinduísmo (sul). Entre os Bobo, a herança judaico-cristão está concentrada na doutrina enquanto no cotiano da comunidade são adotados costumes que remetem às normas de comportamento islâmicas.
A simples visão dos sacerdotes Ashanti informa imediatamente o caráter sincrético de suas crenças e cultura como um todo. A doutrina é marcadamente judaica, a filosofia de vida em comunidade é cristã, o código social para as mulheres e a indumentária revelam a influência muçulmana, os dreads e uso da ganja remontam à Índia Antiga e as três cores simbólicas do rastafarianismo são tributo da Jamaica à Etiópia.
O "Credo" dos Bobo é uma ilustração clara dessa mistura de crenças. Deus é denominado Jeová, como no Antigo Testamento Cristão e nas Escrituras Judaicas. Palavra composta, Jeová ou Jeovah reúne duas palavras do hebreu arcaico: Jod e Ieva, que significam "Homem e Mulher" ou "Adão e Eva", posto que Jod é o Lingam ou o símbolo fálico, e Ieva, é Ova, ou Ovo-mão, ou ainda arca, em referência ao sexo feminino. O "Jah" dos rastafaris é, portanto, a face masculina da divindade Jeovah, nome cujo significado, conforme exposto acima, se perdeu entre as mutações culturais dos séculos que se passaram. Outra peculiaridade do Credo Bobo é a referência ao Haile Selassie, último Imperador da Etiópia, como se fosse o próprio Deus, "nosso DEUS SELASSIE", seja como Deus-Pai ou como Deus-Filho, o Cristo - Messias, Salvador.
O dogma Cristão da Santíssima Trindade, que não é somente cristão, ao contrário, é um dogma universal em relação à ontologia (forma de ser) de Deus, presente em todas as religiões do mundo, ganhou uma interpretação extremamente antropomórfica na concepção Bobo-Ashanti. Para os Bobo, a Trindade celeste manifesta-se na dimensão terrena corporificada nas figuras do Rei, do Profeta e do Sacerdote. Em pleno século XX os discípulos do Príncipe Emmanuel ampliaram a experiência de sacrifício em condição humana do Cristo Jesus. Nesta concepção, toda a Trindade assume formas humanas na Terra e cabe ao crente reconhecer a presença de Deus entre os líderes da comunidade. Foi assim que Selassie, Emmanuel e Garvey tornaram Personas daqueles que é Três e ao mesmo tempo é Um.
USOS E COSTUMES
Quase todos os homens da comunidade são profetas ou padres. Os profetas são pessoas a quem se credita grande sabedoria, são como conselheiros. Os padres são aqueles que conduzem cerimônias religiosas. Crianças e mulheres são subordinadas aos homens. Na Jamaica, os filhos dos Bobo frequentam uma escola: a Jerusalém School Room, onde recebem o ensino básico dentro do espírito religioso do grupo. Alguns jovens prosseguem seus estudos em Kingston, porém são casos muito raros. O comportamento de mulheres e homens sofre restrições de fundo moral. O mais curioso o que prescreve ocultar os cabelos, as tranças e dreads desaparecem nos turbantes afro-árabes característicos da indumentária da Congregação na qual predominam as cores branco e preto em contraste com eventuais acessórios coloridos. As mulheres também devem manter cobertos os braços e as pernas, não podem ficar sozinhas com homens estranhos e mantêm resguardo durante o período mestrual quando não podem cozinhar nem participar de cerimônias religiosas; estar menstruada é considerado um estado de impureza, exatamente como nas tradições judaica e muçulmana. O uso dos tambores africanos, os nyabinghi, em culto religiosos também é uma prática do rastafarianismo que foi incorporada plenamente pelos Bobo-Ashanti.
CONEXÃO TRINIDAD-TOBAGO
Na Jamaica, a comunidade vive em Bull Bay, nos arredores de Kingston; é a Bobo Hill ou "Colina dos Bobo-Ashanti" onde a maioria das casas são pintadas de vermelho, verde e amarelo e enfeitadas com bandeiras do movimento. Ali os Bobo já são uma tradição nacional e desenvolvem árias atividades que permitem um bom nível de vida dentro dos padrões despojados de ambições cosmopolitas. Apesar do aparente isolamento, mantêm relações profissionais com pessoas de fora a quem contratam para certos serviços e por quem são contratados. Os Shantis são hábeis artesãos, e cultivam lavouras de cerais, frutas e verduras. Nos anos de 1990 surgiram vários artistas na reggae music oriundos da comunidade Bobo-Ashanti de Bull Bay. Os mais conhecidos são Sizzla, Capleton, Anthony B., Turbulance e Ras Shiloh.
Em Trinidad, país insular muito próximo à Jamaica, a Comunidade Ashanti, que chegou a pouco tempo na região (SANKAR-ØYAN, 2003), está concentrada na Second Street, Main Road, em uma colina chamada Tanapuna. Ali eles se organizaram em um modo de vida no qual todas as coisas giram em torno do culto ao Cristo Negro, a afirmação da supremacia negra e o ideal de repatriação. Instalados há puco tempo na ilha, os Ashanti em Trinidad são cerca de 30 pessoas lideradas por Sua Majestade Padre Shanti Tafari Edward, considerado uma verdadeira manifestação (ou avatar) do Príncipe Emmanuel, fundador da Congregação na Jamaica. A organização social obedece a regras que são rigidamente observadas. Homens e mulheres vivem separados. As mulheres habitam o alto da colina. Assim como todos os homens referem-se uns aos outros como senhor, príncipe, rei, as mulheres são chamadas princesas, rainhas, imperatrizes e como tais são tratadas.
Nada têm de fazer à serviço dos homens, que cuidam de sua própria alimentação e roupas. Elas se ocupam apenas de suas necessidades pessoais. O dia da comunidade começa as 5:30 h da manhã quando soa um toque de alvorada chamando osirmãos para a leitura de Salmos ao som de tambores. Somente depois deste ritual religioso tem início a rotina diária. A cozinha é uma ocupação muito importante. A comunidade sobrevive da venda ambulante de amendoins. A preparação dos amendoins é uma prioridade; afinal, é o produto que garante o sustento dos Shantis de Tinidad. Enquanto alguns preparam a iguaria, outros embalam os lotes já prontos para serem distribuídos aos vendedores que percorrrem a cidade.
Todos se empenham nesta tarefa, inclusive o líder da comunidade, Padre Edward, obedecendo ao princípio da igualdade entre todos os irmãos. Ao meio-dia, é hora da segunda leitura de Salmos, que precede o almoço. A mesma prática se repete às 6 da tarde, hora dos Salmos noturnos e do jantar. A saúde fica por conta de um "especialista", um "medicine man", o Padre Obadiah. Há alfaiates para confeccionar as roupas e sapateiros que confecionam sandálias e outros calçados. Um toque de ocidentalidade contemporânea é uma televisão, somente admitida porque serve à comunidade como veículo de informação sobre os fatos de interesse que acontecem na ilha e no mundo.
adorei a reportagem
ResponderExcluirAmei o retracto, pois venho tentando perceber esse movimento.
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